Tupã normalmente é descrito como um deus poderoso, destemido, implacável. Nas representações artísticas que encontramos na internet, vemos a imagem de um super-herói: um homem forte, geralmente manipulando com uma das mãos um enorme bastão e com a outra um raio. Afinal, Tupã é o deus tupi do trovão. Mais do que isso: é o senhor de todas as coisas.
Tupã: uma criação europeia
Para começar, Tupã, tal como o conhecemos, é uma criação católica. É o que diz um dos maiores especialistas em cultura brasileira, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), na sua obra-prima Dicionário do Folclore Brasileiro.
Curioso, não? Um dos deuses indígenas mais conhecidos, não apenas senhor do trovão, mas criador de tudo o que conhecemos (a terra, o mar, o céu, as plantas, os animais), não passa de uma invenção do homem branco. Qualquer semelhança com o Gênesis não é mera coincidência.
Diz Cascudo que Tupã é um deus criado pelos europeus católicos assim que iniciaram o processo de catequização no século XVI. As crianças e os indígenas que estavam sendo catequizados aprendiam que Tupã era o deus criador do universo, tal como o Deus cristão. São, portanto, os missionários jesuítas quem estabelecem a identificação do Deus cristão com Tupã. E isso permaneceu.
De acordo com as pesquisas de Cascudo, não há indícios de que houvesse, antes da chegada dos portugueses, a ideia de uma entidade onipotente e onipresente, à maneira do ser supremo das religiões monoteístas.
Outro equívoco comum nas representações de Tupã é a sua personalização. A imagem do índio forte manipulando raios é totalmente estranha aos povos tupi. A personalização também é criação ocidental. Da mesma forma como personalizamos Deus (lembra do velho de cabelos longos e barba branca, sentado eternamente no seu trono?), personalizamos Tupã.
Mas a desconstrução desse deus não para por aqui.
Tupana, mãe do trovão
Segundo o folclorista Ermanno Stradelli (1852-1926), Tupã na realidade é Tupana, mãe do trovão, "ente desconhecido que troveja e mostra sua temibilidade pelo raio, que abate como se fossem palha os colossos da floresta e tira a vida aos seres, deixando os restos carbonizados".
Para os indígenas tupi, todas as coisas, animadas ou inanimadas, têm uma mãe, ou ci. A mãe é quem gera e quem cuida, protegendo sempre seu filho ao longo do seu processo de desenvolvimento. As montanhas, por exemplo, têm uma mãe. Os astros também. E a mãe do trovão é Tupana.
Tupana não passa da mãe do trovão, tida na mesma consideração de todas as outras mães, mas porque mãe de coisas de que o indígena não precisa , que dispensa, é uma mãe que não se honra nem se festeja. Na realidade, quando todas as outras mães têm danças e festas, que lhes são dedicadas, nunca ouvi que houvesse festa dedicada a Tupana.
Ermano Stradelli, Vocabulário Nheengatu-Português
É bom lembrar, diz Stradelli, que mesmo o nome Tupana é uma adaptação posterior. Ou seja: pós-"Descobrimento". A palavra não consta na lenda do Jurupari contada pelas tribos pertencentes à família linguística tupi-guarani. O que há é a ideia de um "ser vagamente suspeitado" que tem o controle do trovão.
Outras mães
Jaci
A mãe dos vegetais recebe o nome de Jaci, a Lua.
Na genealogia dos deuses tupi, Jaci era a Lua, irmã-esposa de Coaraci (ou Guaraci): o Sol. Criadora dos vegetais, ela também é a responsável por cuidar de seu desenvolvimento. Por isso, grandes festas são feitas em adoração a Jaci. Nessas festas, feitas tanto na lua nova (Iaci omunhã) quanto na lua cheia (Iaci icaua) , há fartura de comida e bebida e muitas danças. Afinal, homenagear Jaci é garantia de uma vida de abundância.
Da mesma forma, ofender Jaci é o mesmo que provocar a própria miséria. E isso vale para as outras mães.
Coaraci
Significa Sol em tupi. Vem de coara (dia) e ci (mãe). Aliás, toda palavra tupi que tenha o sufixo ci faz referência à palavra mãe.
Na mitologia, Coaraci é a mãe do dia. Foi ela quem criou e quem cuida da luz diurna. Segundo o folclorista Couto de Magalhães (1837-1898), como todos os seres vivos estão submetidos a Coaraci, os deuses responsáveis pelo zelo das mais diversas espécies estão sob seu domínio.
Anhangá, protetor da caça, e Uauirá, dos peixes, são deuses submetidos a Coaraci.
Kerpimanha
Apesar da Kerpimanha não ter ci no nome, também é uma mãe. A mãe dos sonhos. A que deu origem aos sonhos. Segundo a crença tupi, ela é uma velha que desce do céu e entra no coração da pessoa adormecida.
Durante o sono, a alma vaga por aí. Age, encontra pessoas, revisita lugares, e só não nos lembramos de toda essa viagem se Kerpimanha deixar um recado dentro do coração. Um recado dado por Tupana. Ao encontrar o recado, a pessoa esquece daquilo que fez e viu durante suas andanças.
Assim, se Kerpimanha deixou um recado de Tupana, não nos lembramos da nossa viagem onírica. Se não deixou, acordamos com as lembranças fresquinhas na cabeça. Só um pajé sabe distinguir um tipo de sonho do outro.
Ceuci
É a mãe de Jurupari, o reformador das leis, na tradição oral dos povos tupi. Ceuci é a virgem que engravidou pelo suco do fruto da cucura do mato, também conhecida como purumã na região do Rio Solimões.
O fim de Ceuci é trágico e marca o fim do matriarcado na mitologia tupi.
O fim do matriarcado e a trágica morte de Ceuci
O nascimento de Jurupari, filho de Ceuci, representa uma virada na história dos deuses tupi. Jurupari, conhecido como o reformador das leis, é aquele que decreta um ponto final no predomínio feminino existente até então. Segundo Cascudo, é o conceito de mãe (ci) enquanto origem que torna clara a reação de Jurupari.
Muita gente conhece Jurupari como o "espírito mau", ou mesmo diabo. Mas esse significado, segundo Stradelli, também é criação dos missionários jesuítas. Tupã foi identificado com Deus. Jurupari, com o diabo. Sobre isso, Cascudo não tem demonstra ter dúvidas: "Jurupari-demônio é uma imagem da catequese católica do século XVI".
Seja como for, originalmente Jurupari é o legislador, o ser mitológico responsável por uma reforma profunda nos costumes da humanidade.
Acredita-se que ele foi mandado pelo Sol para corrigir as leis que até então guiavam os seres humanos com o objetivo de encontrar a mulher ideal para o Sol se casar. A condição para Jurupari retornar ao céu é encontrar essa mulher. Mas ela ainda não foi encontrada.
Antes do nascimento de Jurupari, o mundo era controlado pelas mulheres. Imperava o matriarcado. Eram as mulheres que cuidavam dos assuntos que diziam respeito aos destinos do grupo.
Jurupari nasceu para mudar esse estado de coisas. Em resumo: ele tirou as mulheres do poder e pôs os homens em seu lugar. E para garantir a independência dos homens em relação às mulheres, criou festas proibidas às mulheres e estabeleceu segredos que só poderiam ser compartilhados entre homens iniciados.
Cascudo aponta um possível significado para o nome Jurupari: fechar a boca. Iuru significa "boca" e pari um mecanismo que serve para fechar a passagem dos peixes num rio.
Em suas viagens pelo Brasil na primeira metade do século XX, Cascudo observou que as doutrinas morais de Jurupari eram praticadas por diversas tribos indígenas com as quais entrou em contato e influenciavam costumes de algumas regiões do interior do país.
Os oito mandamentos de Jurupari, segundo Pastoral de 1909 de D. Frederico Costa (Bispo do Amazonas), são estes:
1º A mulher deverá conservar-se virgem até a puberdade.
2º Nunca deverá prostituir-se e há de ser sempre fiel a seu marido.
3º Após o parto da mulher, deverá o marido abster-se de todo trabalho e de toda a comida, pelo espaço de uma lua, a fim de que a força dessa lua passe para a criança.
4º O chefe fraco será substituído pelo mais valente da tribo.
5º O tuxaua (chefe) poderá ter tantas mulheres quantas puder sustentar.
6º A mulher estéril do tuxaua será abandonada e desprezada.
7º O homem deverá sustentar-se do trabalho de suas mãos.
8º Nunca a mulher poderá ver Jurupari a fim de castigá-la de algum dos três defeitos nela dominantes: incontinência, curiosidade e facilidade em revelar segredos.
É o 8º mandamento que provocou a morte de Ceuci. Segundo a história, Ceuci desrespeitou a regra que diz que é proibido às mulheres verem ou ouvirem o líder Jurupari discursar.
Certa vez, enquanto Jurupari instruía os guerreiros da tribo, notou que era observado por uma mulher, que se mantinha escondida a fim de escapar da punição. Com apenas um gesto, Jurupari lançou sua magia fatal sobre a mulher, que morreu na hora. Sem saber, ele tinha acabado de matar sua própria mãe.